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CARTA AO ARTISTA CAÍQUE COSTA

Sobre afetos e a vontade de (não) ser

“[...] é justamente esta solidão que nos permite estender nossa existência por territórios mais vastos, mais amplos”

Me sinto impelido a escrever este texto como alguém que rabisca algumas letras em papel de carta, pois percebo como o trabalho de leitura crítica pode direcionar a um caminho poético e afetivo (como um incômodo, uma inquietação – afecção enquanto ação de afetar, proveniente de affectione e com certa proximidade à moléstia). Uma escrita encarnada, uma vez que é produzida no/pelo desassossego do contato, do encontro, uma escrita que só pode ser e expressar-se como corpo e sentido do/para o corpo, ainda que sua motivação se encontre no desaparecimento de si. Uma escrita à flor da pele, como nos versos de Zeca Baleiro: “ando tão à flor da pele, que meu desejo se confunde com a vontade de não ser”.

Endereço essas palavras a um artista em específico, compreendendo que este é mais um movimento impossível (de imaginar a quem se destina a escrita e, posteriormente, sua leitura) do que um compromisso real com os sentidos que podem ser produzidos pela linguagem - da passagem do escritor ao leitor, ou melhor, da passagem do artista-propositor ao espectador-interator.

“Sinto-me só: escreva-me carta de amor” desperta como um chamado do corpo, um anunciar-se ao sensível e à necessidade do Outro na constituição de si. É um anúncio (em sua própria literalidade e simbologia) da existência da condição de si ao Outro. É como uma tentativa de observar-se (reconhecer-se) no reflexo dos olhos de quem te vê. É poder enxergar a si mesmo nos olhos do Outro, como uma forma de confirmar a sua vida – o reflexo do espelho que atesta sua existência, validando essa sombra refletida sobre quem deveria ser.

Caíque, é testificável e palpável sua honestidade e intrepidez ao expor sua solidão como matriz poética. Este talvez seja o axioma dos trabalhos que materializa e das interações que realiza. Ao narrar a si mesmo neste percurso artístico, é capaz de indicar algo incontestavelmente humano e comum: o vazio de si, os mecanismos que levam ou potencializam o desaparecimento de si. Neste caso, não necessariamente como uma busca à questão essencialista sobre “quem Eu sou”, mas como este mesmo Eu se constitui e se interliga com a alteridade.

As operações poéticas (por vezes anacrônicas, como o uso de cartas escritas à mão) evidenciam uma tentativa de desvinculação com os ditames da individualidade (imparcialidade) contemporânea. Ao ler as cartas, estando frente ao registro do gesto de alguém, também me coloco diante da barreira criada pelo mundo digital sobre esses signos gráficos e a concepção de que a escrita deve ser sempre padronizada, perfeita, simétrica, possível de ser apagada sem deixar um rastro da rasura. A escrita manual é franca, sincera em seus caminhos que não podem ser esquecidos ou apagados, uma vez que os mecanismos manuais atestam a existência de algo no passado (mesmo que seja apenas um borrão, uma mancha, uma palavra riscada).

O traço poético da linha na construção das palavras e do sentido tátil do texto realizam acertos artísticos que contestam uma hegemonia da perfeição, da idealidade (da escrita e da vida). O esforço que preciso mobilizar para a compreensão da caligrafia, o olhar que entra em deriva ou que se desvia ao encontrar com palavras tortas, reivindicam um tempo-espaço vivido. Propor este diálogo com seus espectadores-interatores, Caíque, é possibilitar um certo desconforto que torna a vida real. Nesse sentido, pouco importa se as palavras escritas são verdadeiras e retratos da realidade, não é isso que interessa à construção artística, mas as mobilizações sensíveis que teve ao dialogar com estas personas, e ao permitir, neste momento, dialogarmos com vocês.

É um trabalho de escrita sem fim, desvinculado do poder autorizador da autoridade. Também é um desmantelamento da individualidade – o que confirma uma necessidade formal e conceitual em sua proposição – e da individualização, como responsabilização de si e dos sentimentos e sentidos atados à existência referendada como “Eu”. Vejo aqui uma crítica precisa às relações efêmeras atuais: a necessidade de consumo incessante (inclusive de si e do Outro), aos vínculos frágeis e temporários que marcam as relações afetivas, amorosas, sexuais e trabalhistas. Além da constância do irredutivelmente “novo”, em nossas vidas, e das passagens, dos trânsitos, dos não-lugares, do apagamento de si nas multidões.

Concebo os anúncios em espaços públicos, jornais físicos e as cartas (esses disparadores-obras iniciais para a construção poética deste trabalho) como contraestratégias a esse sistema de (re)produção dos corpos e das subjetividades. A velocidade, o fluxo dos acontecimentos, as precariedades múltiplas fundamentam, por um lado, um mundo impessoal, superficial, mas, por outro, fortalecem o sentido da individualidade do ser (em responsabilizar-se e constituir-se de forma autônoma). O sujeito hipermoderno torna-se descompromissado (consigo e com os outros), despersonifica-se para individualizar-se. Não falta, para esse sujeito, o desejo ou a imposição de desaparecimento.

Quando você, Caíque, anuncia “Sinto-me só: escreva-me carta de amor”, também enuncia a si mesmo nesta posição de desaparecimento, de vazio. Trata-se de uma evidência da necessidade para além da conexão (que a qualquer momento pode ser desfeita), mas da confissão de uma vontade de vinculação (como uma continuação do contato). O diálogo com os espectadores (responsáveis por dar corpo à obra) que interagiram com essa proposição (provocação), publicada entre inúmeros outros anúncios ou rabiscos em paredes, buscando amizade, atenção, sexo, compras e vendas, demonstra essa vontade de vínculo. Não te satisfaz apenas que respondam tua provocação publicada, mas que este sujeito, diante do desconhecimento inicial da proposição como arte, permaneça preso nesta relação iniciada, que ele dê continuidade a este jogo que é, principalmente, poético e artístico, mas também pessoal.

Anunciar-se é também enunciar-se como alguém à vista dos Outros; é buscar uma brecha neste sentimento da inexistência, de desaparecimento, uma vez que a confirmação do nosso Eu depende, sobretudo, dessa existência da alteridade. É uma brecha nessa posição entorpecida e impotente de sentir-se vazio, um estar-em-branco, como a folha do papel que espera ser preenchida, rasurada. Anunciar-se é entrar neste campo da vertigem entre o desejo e o desespero, de olhos fechados, sem saber quem encontrará neste caminho. É utilizar dos meios hipermodernos de venda (e que tratam a vida também como mercadoria) e tensioná-los. Da ausência, da despersonalização, criar um trabalho sensível.

Existe uma profundidade afetiva nesta proposição que consegue ultrapassar esse estágio letárgico ou vertiginoso do desaparecimento, pois você, Caíque, enuncia-se desnudando-se, produzindo uma foto em peito aberto. Ainda que relate sobre a produção a partir desse encontro com o vazio, com a apatia e a falta de conexão, percebo que talvez poucos a tenham sentido tão intensamente. É um trabalho repleto de sensações, de corporeidade, de presencialidade, talvez não imediatamente reconhecidas, mas materializadas em vultos e silhuetas. Particularmente, quando cria “Anúncio I” (2020), e sob a aparência infinita de dizeres que buscam destacar-se uns mais que os outros, sobrepondo imagens e textos, e traça uma linha imprecisa, que facilmente identificamos como a silhueta de um rosto, deixa entrever a presença dessa ausência por trás daqueles dizeres tão despersonalizados. Não existe uma conexão entre as extremidades da linha, mas isso torna a imagem ainda mais positiva (para além da associação com o perfil de alguém), pois a abertura que ela expõe também é uma abertura à criação de outros vínculos.

Essa mesma silhueta aberta é apresentada em “Vultos” (2022), como um convite ao espectador a olhar para si, mas também como um reconhecimento desse Outro em Si. O reconhecimento de sua presença vultuosa na obra, que, por alguns instantes, pode ser preenchida pelo reflexo de algum espectador, mas também essa intervenção na imagem de quem olha, ao ser atravessado por seu rastro.

Entre as leituras dos trechos das cartas, existe uma passagem que, por excelência, destacou-se das demais e, por isso mesmo, introduz e apresenta as linhas de escrita deste texto. Um de seus interlocutores, refletindo sobre a condição da solidão, expõe: “[...] é justamente esta solidão que nos permite estender nossa existência por territórios mais vastos, mais amplos”. A singularidade não se deve apenas à condição na qual a persona se encontrava, mas à riqueza existencial que distancia a solidão (como princípio interior) e a interpreta como um sentimento à flor da pele, como uma intensidade em expansão, não em retração. A solidão como uma pulsão de descoberta, como uma vontade de ir além, como uma possibilidade aberta. “Sinto-me só: escreva-me carta de amor” é, propriamente, essa deriva sensível ao mundo, essa extensão da pele, do corpo, essa abertura (e convite) à criação de vínculos.

Abraços afetuosos,

Lucas Benatti.

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