Os encontros, as contingências
Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; […] significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. — Ailton Krenak
A exposição Os encontros, as contingências apresenta os artistas da Casa Tato 5 e sinaliza, a partir dos diálogos entre as obras — e delas com o espaço projetado por Rino Levi — algumas estratégias colaborativas, efêmeras e fluidas, instáveis. Não o idílio de um “coletivo” estático, mas a política em seu sentido mais generoso, os arranjos possíveis e, às vezes, imprevisíveis. Como equilibrar-se no mundo e em sociedade? O equilíbrio pode ser também um constante movimento. Como assumir a fragilidade (o engodo) da visão ocidental branca, masculina e extrativista, que se coloca acima de tudo e deseja um mundo homogêneo, monocultura de espécies humanas e não-humanas? As constelações, de que fala Krenak, podem sinalizar um futuro possível.
Esta pequena constelação de artistas e trabalhos assume agora a seguinte forma: Caíque Costa cria imagens borradas, de situações cotidianas que foram profundamente afetadas nos últimos dois anos; anuncia a solidão no jornal e em pontos de grande circulação. Consuelo Vezarro cria formas vacilantes, que remetem ao abstracionismo lírico; as pinceladas em têmpera ou em acrílica bastante diluída, adicionam uma camada sensorial aos trabalhos. Eliane Gallo constrói jardins diáfanos, pequenos mundos de tecidos sobrepostos e bordados, que insistem em florescer, apesar de tudo. Federico Guerreros investiga os interiores, desertos, em desenhos carregados de matéria oleosa, como densos testemunhos. Justino atenta para as possibilidades da vida em comum, e o quanto este conviver é mediado pela imagem, além de ter sido profundamente afetado pela pandemia de Covid-19. Liane Abdalla cria florestas em néon, inverossímeis e brilhantes, como se incorporassem as luzes das metrópoles, fixadas com anilina e tinta metálica sobre madeira. Lucas Quintas investiga os equilíbrios provisórios, as corrosões e os sutis embates que são, afinal, indícios da instabilidade da matéria. Lucy Copstein trabalha com memórias compartilhadas e anônimas; confissões fragmentadas, que se desdobram em fragmentos de sons, painéis de tecido e cacos de porcelana. Márcia Rosa propõe, em grandes formatos, uma reflexão sobre as disputas que atravessam a vida não-humana, em formas que, embora estáticas, sugerem um constante movimento da existência. Patrícia Lopes ressignifica trabalhos de décadas atrás, tendo em vista o atual momento de crise; seres antes familiares tornam-se estranhos, encapsulados em resina. Renata Sandoli revisita o tema da natureza-morta. Mais que um gênero pictórico típico do século 17, tratava-se de manifestação de luxo. Criados em 2021, trazem um gosto amargo, tendo em vista a mais recente catástrofe social. Sara Bittane desconstrói e dissolve — literalmente — a forma de flores e plantas, sugerindo um comentário sobre a impermanência e as diversas representações, ou distorções, do real. Sheila Ortega cria interiores improváveis em pintura, a partir de performances e instalações com objetos, que por sua vez ensejam a criação de pequenas esculturas em cerâmica e engobe. Sofia Saleme borda corpos dançando Butoh numa faixa de kimono marcada pelo tempo; cria microcosmos em nanquim, folha de ouro e pigmentos naturais sobre papel Washi, refletindo sobre a passagem do tempo, a incompletude e a imperfeição.
É certo que vivemos num mundo dilacerado, mas talvez as associações fortuitas e efêmeras possam nos ajudar a imaginar um futuro menos desigual e violento. Das contingências — aquilo que nos escapa e a realidade que se impõe — podem surgir encontros e, por que não, uma sobrevivência possível porque colaborativa. Em constante movimento.
Mariana Leme, curadora